CAITLÍN R. KIERNAN
BEOWULF
Baseado
no guião
cinematográfico
de
Neil Gaiman e Roger Avary
com
Introdução de Neil
Gaiman
FICHA TÉCNICA
Título
original: Beowulf
Introdução: Neil
Gaiman
Tradução: Alice
Rocha
Capa: Arranjo gráfico de Ana Espadinha
Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.
1.a edição, Lisboa, Novembro, 2007
À Grendel
Talibus laboribus lupos defendimus.
INTRODUÇÃO
Por vezes, penso nas histórias como se fossem animais. Há as raras, há as comuns, outras há em vias de extinção. Há histórias que são ancestrais, como os tubarões, e outras cuja presença neste planeta é tão recente como a das pessoas ou dos gatos.
A Cinderela, por exemplo, é uma história que, nas suas diversas
variantes, se propagou pelo mundo com sucesso idêntico ao das ratazanas ou dos corvos. A encontramos em todas as
culturas. Depois há histórias como a Ilíada, que mais me
fazem lembrar as girafas: incomuns, mas de imediato reconhecíveis sempre que são mencionadas ou narradas. Há, não pode deixar de haver, histórias que se extinguiram, como o mastodonte ou o tigre-de-dentes-de-sabre,
e que nem os ossos nos deixaram como testemunho: histórias que morreram com o desaparecimento
dos povos que as narravam, ou histórias que, há muito
esquecidas, deixaram de si apenas fragmentos fósseis noutras histórias. Até nós chegaram apenas meia dúzia de capítulos do Satiricon, nada mais.
Beowulf poderia,
com toda a facilidade, ter sido uma delas.
Pois, em tempos que lá se vão, bem para mais de mil anos, as pessoas contavam esta história. Mas o tempo passou, e ela caiu
no esquecimento. Foi como um animal em cuja extinção, ou quase-extinção, ninguém tivesse reparado. Esquecida pela
tradição oral, foi
preservada num único manuscrito.
Os manuscritos são frágeis, extremamente susceptíveis ao tempo ou ao fogo. O manuscrito
do Beowulf apresenta marcas de ter sido chamuscado.
Mas sobreviveu...
E, uma vez redescoberto, pouco a pouco, começou a procriar, como uma espécie em vias de extinção que, com todos os cuidados, é devolvida a este mundo.
O meu primeiro contato com a história (trezentos anos depois de o único
manuscrito ter sido
adquirido pelo British Museum) foi-me proporcionado por meio dum artigo
publicado numa revista inglesa, afixado numa parede da sala de aula. Foi essa a
primeira ocasião em que li
a respeito dos seus protagonistas: Beowulf, Grendel e da mãe de Grendel, ainda mais aterrorizante.
O meu segundo contato deu-se provavelmente através do Beowulf em formato de história
em quadrinhos, editado durante um breve período pela DC Comics. O protagonista usava uma tanga de metal e um
elmo com chifres tão grandes
que não conseguia
passar pela porta, e enfrentava cobras enormes e monstros da mesma sorte. A única vantagem que me trouxe foi
ter-me impelido a ir em busca do original, sob a forma duma edição da Penguin Classics, que tornei a
ler anos depois, quando, em parceria com Roger Avary, decidimos tornar a narrar
a história em versão cinematográfica.
A roda continua a girar. Beowulf abandonou
há muito a
lista das espécies em
vias de extinção e começou a reproduzir-se nas suas
diversas variantes. Já foram
realizados inúmeros Beowulf
para a grande tela, desde uma versão de ficção científica até outra em que Grendel encarna uma
tribo sobrevivente de Neandertais. Todas elas são válidas:
diferentes versões, diferentes
recombinações do DNA
da história. As que
obtiveram êxito serão recordadas e retransmitidas, as
outras, acabarão por cair
no esquecimento.
Quando nos perguntaram, a mim e a Roger Avary,
se achávamos que
se devia escrever um romance a partir do livro, dissemos que não, e sugerimos que as pessoas
deveriam, ao invés, ler o
poema original. Ainda bem que os manda-chuvas nos ignoraram, e, melhor ainda,
que desencantaram Caitlín R.
Kiernan para narrar esta versão da história.
Pois foi isso que ela fez. Caitlín pegou no conto de Beowulf e no guião do filme e, a partir de ambos,
criou uma narrativa empolgante, uma saga que cheira a sangue e hidromel, que
deveria ser entoada à meia-noite
em pântanos e
cumes desertos.
Relata-nos uma história de heroísmo, fogueiras acesas e ouro,
constelada por amor, segredos e momentos de violência extrema. É uma narração antiga, que merece ser contada
enquanto as pessoas se interessarem por heróis, monstros e trevas. É uma história para
cada um de nós.
Todos temos os nossos demônios.
Beowulf estava convencido de que o seu era
Grendel...
Neil Gaiman
PRÓLOGO
Era uma vez um tempo anterior ao homem,
quando o mundo ainda nem sequer existia, quando todo o cosmos se resumia ao vácuo escuro do buraco de Ginnunga.
Na extremidade mais ao norte, ficavam os ermos gélidos de Niflheim, e no ponto mais meridional, as terras das
fornalhas vivas e faiscantes, domínio do gigante Muspéll, e, assim, designadas Muspellsheim.
Na imensa vastidão deserta
de Ginnunga, os ventos frios do Norte encontravam-se com as brisas cálidas que sopravam do sul, e os
vendavais rodopiantes de chuva e neve dissolviam-se em gotas de nada para formar
Ymir, o pai de todos os Gigantes do Gelo. Os gigantes chamavam-lhe Aurgelmir, o
vociferador de cascalho. Audhumla, a primeira vaca, também teve origem nestas
gotas de geada. Com o seu leite, alimentou Ymir, e, com a sua língua, lambeu o primeiro de todos os
deuses, Búri, a
partir dum bloco de sal. Numa época mais
tardia, o filho de Búri, Bur,
teve três filhos da
deusa Bestla: Odin, Vili e Vé, e foram
eles que mataram o poderoso Ymir e depois levaram o seu cadáver para o âmago profundo do buraco de Ginnunga.
A partir do seu sangue, criaram os lagos, os rios e os mares, e, dos seus
ossos, entalharam as montanhas. A partir dos seus dentes maciços, fizeram todas as pedras e o
cascalho, do cérebro, as nuvens,
e do seu crânio construíram o céu e elevaram-no acima da terra. E
foi assim que os filhos de Búri edificaram
o mundo, que viria a ser o lar dos filhos dos homens. Por último, serviram-se das sobrancelhas
de Ymir para erguer uma enorme muralha, a que chamaram Midgard, situada para lá dos mares, por toda a volta da
circunferência do
disco do mundo, de modo a que os homens ficassem para sempre protegidos da
hostilidade dos gigantes que não se
afogaram no terrível dilúvio do sangue de Ymir.
E seria ali, sob o santuário de Midgard, que todas as incontáveis vidas dos homens haveriam de decorrer.
Ali haveriam de se erguer, lutar e cair. Ali haveriam de nascer e morrer. Ali,
os maiores dentre eles haveriam de encontrar a glória, graças a feitos
prodigiosos e, depois de morrerem como heróis, seriam escoltados pelas Valquírias através das
portas do salão de Odin,
Valhalla, onde se deleitam com comida e bebida, à espera de Ragnarok, a derradeira batalha entre os deuses e os
gigantes, na qual haverão de combater
ao lado de Odin, o Pai de Todos. O grande lobo, Fenrir, será finalmente libertado no mundo e,
nos oceanos, o mesmo acontecerá à serpente Midgard. Yggdrasil, a árvore do mundo, haverá de tremer as suas raízes enfraquecidas pelas mandíbulas dilacerantes do dragão Nidhogg. Uma idade do machado,
uma idade de espadas contra espadas e escudos quebrados, em que os irmãos haverão de lutar entre si e matar-se uns
aos outros; uma idade do vento, uma idade do lobo, no crepúsculo dos deuses, quando todo o cosmos
se desintegrar, finalmente, no caos.
Todavia, antes da chegada desse fim que nem
sequer os deuses são capazes
de prever, viriam ainda todas as gerações de homens e mulheres. Todas as incontáveis guerras e traições, amores, triunfos e sacrifícios. E os maiores poderiam,
durante algum tempo, ser lembrados e transmitidos através das canções e dos poemas dos escaldos.
Ali, sob Midgard, haveria uma idade de heróis.
Primeira
Parte
GRENDEL
CAPÍTULO I
UM
PREDADOR NA ESCURIDÃO
A terra dos dinamarqueses termina aqui, nestes
enormes penhascos escarpados e altaneiros de granito que se projetam mar gélido adentro. A espuma das ondas
geladas açoita as
praias estreitas e selvagens de cascalho com fragmentos de rocha e pedregulhos
caídos, seixos
polidos, e areia misturada com farrapos de gelo e neve cortante. Não são um lugar adequado ao homem, estas costas áridas e fustigadas pelo vento,
nesta época do ano
visitada pela fome e evitada pelo sol. Durante o dia, ainda se vêem umas quantas criaturas selvagens
— apenas
focas, morsas e a carcaça apodrecida
duma baleia que deu à costa,
apenas gaivotas e águias que
pairam bem alto contra o céu matizado
de variadas tonalidades de chumbo. Durante as longas noites, a costa
transforma-se num reino ainda mais deserto e proibitivo, iluminado apenas pelos
raios furtivos do único olho pálido da Lua, à medida que esta aparece e
desaparece por entre as nuvens e o nevoeiro.
Contudo, mesmo aqui, existe um refúgio. Empoleirada como um farol que
ilumina todos os que vagueiam perdidos no frio, acha-se a torre do rei scylding,
Hrothgar, filho de Healfdene, neto de Beow, bisneto de Shield Sheafson. A
torre constela a escuridão de pontos
dum amarelo vivo, e esta noite, mesmo numa noite tão desoladora como esta, ao abrigo
da torre, decorre uma celebração, um
banquete.
No interior das paredes robustas do novo salão do hidromel do rei, a que este
deu o nome de Heorot, o salão dos
veados, reuniram-se os seus nobres e respectivas damas. As fogueiras ardem bem
vivas sob o telhado de madeira e colmo, afugentando o frio e impregnando o ar
de deliciosos aromas culinários e do
perfume reconfortante do fumo da madeira. Aqui, acima do alcance da fúria do mar, o rei honrou finalmente
a sua promessa, concedendo este enorme salão aos seus leais súditos. Em
todas as terras dos Nórdicos, não há outro que se compare em dimensões e imponência, e
esta noite acha-se inundado de gargalhadas ébrias e do barulho estrepitoso de pratos e facas, a cadência irregular de centenas de vozes
a falar ao mesmo tempo, que não difere
tanto assim da cadência das
ondas lá fora, exceto
que aqui não há uma só réstia de gelo, e o único lugar
em que uma pessoa se poderia afogar seria nas infindas taças de hidromel. Por cima das
fogueiras acesas em amplas fossas abertas no chão, porcos e veados, coelhos e gansos assam em espetos de ferro, e
as chamas saltam e dançam,
projetando sombras estonteantes ao longo das paredes, dos rostos folgazões e das traves maciças de madeira decoradas com cenas
esculpidas de guerra e de caça, com as
imagens idólatras de
deuses e monstros.
— Então eu não vos disse que honraria a minha
promessa? — vocifera o
gordo rei Hrothgar desde a alcova instalada ao fundo do comprido salão. É um homem idoso, que já deixou para trás os seus dias de batalha, a longa
barba e as tranças do
cabelo tão alvas
como a neve de Inverno. Apenas com um lençol a envolvê-lo,
ergue-se lentamente do estrado em cima do qual se encontra o seu trono,
movimentando-se tão depressa
quanto a idade e a cintura avantajada lhe permitem. — Um ano atrás... eu, Hrothgar, vosso rei, jurei
que, não tardaria,
haveríamos de
celebrar as nossas vitórias num
salão novo, um
salão tão imponente quanto belo. Agora,
digam-me lá, honrei ou
não honrei a
minha promessa?
Momentaneamente distraídos da bebida, da festança e da alegre devassidão, os homens do rei levantam as taças e as vozes, também, aclamando o velho Hrothgar,
indiferentes ao fato de apenas meia dúzia deles se encontraram sóbrios o suficiente para perceberem o motivo da aclamação. Ao ouvir aquelas vozes, Hrothgar
arreganha os dentes num sorriso embriagado e esfrega a barriga, baixando em
seguida os olhos para a sua rainha, a bela Lady Wealthow. Embora pouco mais
seja que uma criança, esta rapariga
de olhos da cor das violetas e adornada de ouro, peles e jóias cintilantes não se deixa sobrecarregar nem cegar
por qualquer tipo de ilusões pueris a
respeito da fidelidade do marido. Ela sabe, por exemplo, das duas donzelas que
se estão neste
momento a rir à socapa e
com quem ele se deitou ainda esta noite, raparigas das quintas ou talvez filhas
dos seus próprios
nobres, e com quem o rei ainda estava entretido quando quatro cavaleiros
chegaram para o transportar dos seus aposentos para o salão apinhado de gente. Hrothgar nunca
se preocupou minimamente em esconder-lhe as suas meretrizes e amantes, e, por
conseguinte, Wealthow nunca encontrou motivo para fingir que não as via.
— Ah,
hidromel! — resmunga
ele arrancando das mãos da rainha
o chifre adornado que serve de taça. — Obrigado,
minha encantadora Wealthow! — Esta lança-lhe um olhar de indignação, mas Hrothgar já desviou a sua atenção dela, e leva o chifre aos lábios, entornando hidromel pelo
queixo abaixo até ao
emaranhado da barba.
A taça em forma de chifre é um objeto de cortar a respiração, e já em
diversas ocasiões ela se
referiu explicitamente ao fascínio que lhe
causa. Foi seguramente elaborado em tempos mais recuados, numa época em que objetos daquele
requinte artístico não eram raros naquela terra, ou então foi produzido nalgum reino
distante por um povo que ainda não se esquecera de tal arte. E um mistério e um encanto para a vista, esta
relíquia
resgatada ao tesouro dum dragão; mesmo
preso nas mãos papudas
dum homem tão rude
quanto o marido, o chifre continua a ser um deleite para os seus olhos. O ouro
mais requintado gravado com estranhas runas como ela nunca antes viu, e dois pés em garra numa das extremidades,
de modo a que o chifre possa ser pousado sem se virar e entornar o conteúdo. A fazer de pega, está um dragão alado, também ele de ouro trabalhado, com um único e perfeito rubi engastado na
garganta. Chifres, presas e o percurso denteado da sua espinha dorsal sinuosa e
cortante, uma criatura terrível recuperada
dalguma narrativa esquecida, ou então talvez o artífice pretendesse
que este dragão evocasse
a serpente Nidhogg, A Que Mordisca Raízes, que se acha enroscada na escuridão das profundezas do Freixo do
Mundo.
Hrothgar arrota, limpa a boca e em seguida ergue
o chifre vazio como se quisesse brindar a todos reunidos na sua presença.
— E será neste salão — brada ele — que havemos
de dividir o saque das nossas conquistas, todo o ouro e todos os tesouros. Este
será sempre um
lugar de folguedo, alegria e fornicação... daqui até ao fim dos
tempos. Eu nomeio este salão Heorot!
E, mais uma vez, todos os nobres, respectivas
damas, bem como todos os restantes aclamam, e Hrothgar vira-se novamente para
Wealthow. Tem gotas de hidromel agarradas ao bigode e à barba como um estranho orvalho
ambarino.
— Vamos
distribuir uma parte do tesouro, minha linda?
Wealthow encolhe os ombros e não sai do seu lugar, enquanto o rei
mergulha uma mão dentro
duma arca de madeira que foi disposta no estrado entre os tronos de ambos. Está quase a transbordar de ouro e
prata, com moedas cunhadas numa dúzia de terras estrangeiras e fíbulas incrustadas de pedras preciosas. O rei atira um punhado de
moedas para a multidão
expectante. Algumas são agarradas
ainda no ar, ao passo que outras chovem ruidosamente em cima dos tampos das
mesas e do pavimento imundo, originando uma escaramuça gananciosa e desordenada.
Agora o rei escolhe um único colar de ouro retorcido de
dentro da arca de madeira e segura-o acima da cabeça, recebendo nova aclamação dos convidados. Desta feita, porém, Hrothgar abana a cabeça e segura o colar ainda mais alto.
— Não, não, este aqui não é para nenhum de vós. Este é para o Unferth, o mais asisado dos
meus homens, violador de virgens sem rival e o mais destemido de todos os
valentes brigões... Onde
raio estás tu, Unferth,
seu bastardo com cara de doninha!? Unferth...
Ao fundo do comprido salão, à beira duma enorme fossa cavada diretamente no chão, de modo a que os homens não sejam obrigados a enfrentar o
vento frio e arriscarem-se a uma gangrena só para urinarem, Unferth está ocupado a aliviar-se enquanto trava uma discussão com outro dos conselheiros do
rei, Aesher. Ainda não ouviu o
rei a chamar pelo seu nome, a voz do velho abafada pela infindável algazarra que reina no salão, e baixa os olhos para a fossa
escura, uma enorme boca sequiosa que se abre completamente para receber a sua
quota-parte de hidromel, logo que os nobres o tenham despachado. Transparece
uma certa dureza deste homem, um laivo de amargura e ferocidade das suas feições macilentas e das tranças tão pretas como as penas dum corvo, um certo calculismo do brilho baço dos seus olhos verdes.
— Não é caso para te estares para aí a rir — admoesta
ele Aesher. — Estou a
dizer-te, temos de começar a levar
este assunto a sério. Ouvi
dizer que, agora, os crentes se estendem desde Roma até ao Norte, à terra dos Francos.
Aesher franze o cenho e fita a corrente amarela
da sua própria urina.
— Bom, então responde-me lá a esta pergunta: quem é que achas que venceria uma briga de
punhais, Odin ou esse Jesus Cristo?
— Unferth!
— ruge
novamente Hrothgar, e desta feita Unferth ouve-o.
— Oh, o que é que se passa agora? — suspira ele. — Será possível que já nem para mijar tenho paz e sossego?
Aesher sacode a cabeça por entre uma gargalhada à socapa.
— É melhor
despachares-te —
aconselha-o, a rir-se. — Se eu
fosse a ti, não o fazia
esperar. Que importância tem a
bexiga cheia dum homem quando comparada com a vontade do seu rei?
— Unferth,
filho bastardo daquele bastardo do Ecglaf! Onde é que paras, seu ingrato?
Unferth apressa-se a enfiar a fralda dentro das
calças, em
seguida, com alguma relutância, dá meia-volta para abrir caminho por
entre a multidão ébria. Alguns afastam-se para o
deixar passar, enquanto outros parecem nem dar por ele. Unferth, porém, não tarda a postar-se diante do estrado do rei, forçando um sorriso e levantando uma mão para que Hrothgar repare na sua presença.
— Aqui
estou, meu rei! — anuncia
ele, e Hrothgar, depara-se com ele, arreganha ainda mais os dentes e debruça-se para a frente, colocando o
colar de ouro retorcido em volta do pescoço magro de Unferth.
— Sois
demasiado bondoso, meu senhor. A vossa generosidade...
— Não, não, não. Não é nada que não mereças, nada que não mereças, meu bom e fiel Unferth. — E o olhar de Hrothgar torna a
varrer os seus súditos. E,
uma vez mais, um entusiástico
aplauso se eleva da multidão. O arauto
do rei, Wulfgar, avança de entre
as sombras do trono para conduzir os nobres embriagados e as respectivas damas
numa cantoria familiar e, não tarda, a
maior parte do salão
acompanha-o. Os guerreiros batem com os punhos e as taças nos tampos das mesas, ou então saltam para cima destas e começam a patear, enquanto, por todo o
Heorot, ecoa a canção:
— Hrothgar!
Hrothgar!
«Hrothgar! Hrothgar!
«Ele enfrentou o dragão demoníaco
«Quando outros hesitaram.
«E depois, meus senhores,
«Empunhou a espada
«E fê-lo
ajoelhar-se!
Agora já todos os músicos de
Hrothgar se juntaram ao coro de vozes, acompanhando a canção com as suas harpas, flautas e
tambores. Até mesmo Unferth
canta, mas o presente do rei jaz frio e pesado em volta do seu pescoço, e pressente-se muito menos
entusiasmo e sinceridade na voz.
— Hrothgar!
Hrothgar!
«O maior dos nossos reis.
«Hrothgar! Hrothgar!
«Ele despedaçou as asas
do dragão!
* * *
Todavia, a correnteza de ruidosa folia que
jorra de Heorot — as
gargalhadas e as canções entusiásticas, o tilintar das moedas de ouro
e prata — não é bem acolhida por todas as criaturas que habitam nesta terra à beira-mar. Há seres noturnos, que não são homens nem animais, seres ancestrais descendentes duma espécie de gigantes, dos trolls[1]
ou pior ainda, que se mantêm em alerta
constante, açoitados nos
pauis úmidos e pântanos proibitivos. Para lá das muralhas imponentes e das
fortificações de
Hrothgar, para lá dos portões, das pontes e das ravinas, onde
a terra arável e os
pastos cedem subitamente lugar ao ermo, situa-se uma floresta mais antiga que a
memória dos
homens, um bosque que já existia
muito antes da chegada dos dinamarqueses. E nos vales situados na extremidade
mais afastada destas árvores
nodosas, há pântanos congelados e lagos sem fundo
que conduzem ao mar, e há outeiros rochosos
crivados de grutas, túneis que
penetram fundo na rocha, à semelhança das larvas que se enterram na
carne dos mortos.
E numa destas grutas, acha-se uma criatura
descomunal e, aos olhos humanos, hedionda, agachada na imundície e no cascalho, à luz duma brilhante poça de luar que se derrama pela
entrada da gruta. Geme lastimosamente, agarrada ao crânio enfermo e malformado, tapando
as orelhas defeituosas numa tentativa de abafar os sons tortuosos da folia que
lhe chegam de Heorot como uma neve atroadora e persistente. Pois, embora o salão do hidromel e a torre alcandorada
no rochedo sobre o mar sejam apenas um fulgor distante, há uma magia peculiar nas paredes e
nos recantos desta gruta, uma qualidade singular que amplifica aqueles ruídos longínquos e os transforma num tumulto
ensurdecedor. E é por isso
que as orelhas da criatura troll ressoam e lhe doem, impiedosamente
castigadas pela canção dos
homens de Hrothgar, tal como a costa é fustigada pelas ondas até se desfazer em areia.
«Ele ofereceu-nos proteção
Quando os monstros erravam pela
terra!
E um a um
Ele os desafiou...
E eles morreram-lhe às mãos!»
À medida que
a moinha dentro da sua cabeça se torna
quase insuportável, a
criatura continua a gemer — um choro
agudo que constitui um misto de sofrimento e raiva, medo e dor. Desesperada,
agarra-se ao focinho, depois investe debalde contra a escuridão e o luar, como se as suas garras
pudessem apanhar o ruído no ar e
esmagá-lo,
transformando-o em algo silencioso, domado e morto. Tem a certeza de que os seus
ouvidos estão prestes a
rebentar e esta agonia não tardará a conhecer um fim. Mas as suas
orelhas não rebentam,
e a dor não acaba, e
a canção dos
guerreiros duplica de intensidade, ficando ainda mais alta que antes.
«Hrothgar! Hrothgar!
Com este banquete, nós honramos
Hrothgar! Hrothgar!
Ele matou o mostro feroz!’»
— Já chega, mãe — suplica a criatura, revirando os olhos e rilhando os dentes ao
estrondo da canção. — Mãe, eu não agüento isto. Mais um pouco, e não agüento mais!
«Esta noite cantamos em seu louvor,
Os mais valentes guerreiros.
Por isso empunhem as vossas lanças!
Não teremos receios,
Desde que Hrothgar reine!»
A criatura cerra os seus grandes punhos e, pela
entrada da gruta, fita o frígido céu noturno, dirigindo uma súplica silenciosa a Máni, a Lua branca, filho do gigante
Mundilfaeri, para que acabe com aquela algazarra duma vez por todas.
— Eu sozinho
não posso — explica o monstro ao céu. — Estou proibido. A minha mãe... ela avisou-me que eles eram muito
perigosos. — E em seguida
imagina uma saraivada de pedras e labaredas prateadas arremessadas pelo gigante
da Lua, projetando-se dos céus para
aniquilar duma vez para sempre a vozearia abominável e injuriosa dos homens. Mas a cantoria prossegue, e a Lua
insensível parece
apenas escarnecer do seu tormento.
— Já chega — insiste a criatura, ciente agora
do que tem de ser feito, do que ela precisa de fazer por si própria, uma vez que
ninguém se dispõe a pôr um fim àquela
barulheira: nem os gigantes, nem a mãe. Se quiser voltar a ter paz e sossego, tem de os obter pelos
seus próprios
meios. E, reunindo toda a sua fúria e
sofrimento como se fosse um escudo, reforçando-o bem em seu redor, o monstro apressa-se a abandonar a
segurança das
trevas, saindo sorrateiramente da gruta para o luar bruxuleante, alheio às suas súplicas.
*
* *
Do lugar onde se encontrava, atrás do trono do rei, Unferth observa
o salão do
hidromel a mergulhar num pandemônio ébrio cada vez mais profundo. A sua
taça acha-se
vazia, já há algum tempo, e o seu olhar varre a
sala em vão, à procura do escravo que tarda a vir
enchê-la. Não há sinal do rapaz em lado algum, apenas os rostos dos nobres que
cantam e riem alheios a tudo o mais era seu redor. A sua atenção parece concentrar-se
exclusivamente na bebida, nas mulheres, no banquete e na canção em louvor do velho Hrothgar.
— Hrothgar,
Hrothgar!
«Que derrotou todos os demônios!
« Hrothgar, Hrothgar!
«E os devolveu a Hel[2]!
Wulfgar está sentado ali próximo, na
beira do estrado, com uma donzela ruiva alapada no colo. Ele leva-lhe a taça aos lábios e verte-lhe gotas de hidromel
por entre o rego dos seios, e ela ri-se e guincha enquanto ele lhe lambe a
bebida do peito. Unferth franze o sobrolho e torna a perscrutar a multidão em busca do escravo, um rapazote
coxo e preguiçoso chamado
Cain. Por fim, lá vislumbra
o rapaz a mancar por entre os convivas, enquanto segura uma grande taça entre as mãos.
— Rapaz! — grita-lhe Unferth. — Que é feito do meu hidromel?
— Aqui o
tendes, meu senhor —
responde-lhe o escravo, escorregando de imediato numa poça de vômito arrefecido nos degraus do
estrado e salpicando hidromel da taça para o chão.
— Estás a entorná-lo! — resmunga Unferth, agarrando na
bengala de Aesher, um pau de madeira de vidoeiro nodoso, e acertando uma
pancada com força na testa
de Cain. O rapaz perde o equilíbrio, por
pouco não se
estatela no chão e torna a
entornar o hidromel nos degraus do estrado.
— Seu idiota
desastrado — escarnece
Unferth, batendo novamente em Cain. — Como te atreves a desperdiçar o hidromel do rei?
O rapaz abre a boca a ensaiar uma resposta, um
pedido de desculpas, mas Unferth continua a agredi-lo violentamente com a
bengala. Uns quantos nobres voltam-se para observar a cena e riem-se à socapa dos apuros em que o escravo
se vê metido.
Por fim, Cain desiste e deixa cair a taça, que, em qualquer dos casos, já está vazia e
foge o mais depressa que a sua perna deformada lhe permite, refugiando-se
debaixo duma das mesas compridas.
— Verme inútil — grita-lhe Unferth. — Eu devia era dar-te a comer aos porcos, e o caso ficava já arrumado!
Hrothgar tem estado a assistir do seu trono, e
inclina-se para um dos lados para soltar um sonoro peido, recebendo uns vagos
aplausos dos nobres.
— O meu medo
é que tu envenenasses os porcos — diz ele a Unferth, peidando-se uma
vez mais. — Mas quando
é que esta maldita cantilena acaba? — E, como em resposta à sua pergunta, a multidão lança-se a nova estrofe.
— Ele
ergueu-se como um salvador,
«Quando a esperança já nos
faltava.
«0 monstro foi es cornado
«E a paz restaurada!
«A sua lenda há de perdurar!
Hrothgar emite um resmungo de profunda satisfação e sorri, varrendo com o olhar a
confusão gloriosa
e desregrada de Heorot Hall.
— Pergunto
eu: somos ou não somos os
homens mais poderosos de todo o mundo? — murmura, virando-se para Aesher. — Não somos nós os mais ricos? Não nos divertimos nós com as mais bonitas mulheres que
há? Não podemos nós fazer tudo o que muito bem nos
der na real gana?
— É bem verdade — assentiu Aesher.
— Unferth? — chama o rei Hrothgar, mas aquele
continua a espreitar com ar de ameaça o lugar por onde o escravo escapuliu por baixo da mesa, e não lhe responde.
— Mas tu estás surdo, Unferth?
Unferth solta um suspiro e devolve a bengala de
vidoeiro a Aesher.
— É verdade — responde ele com parco entusiasmo.
— Sim, é verdade.
— Ai lá disso não tenhas dúvidas — resmunga Hrothgar, tão plenamente satisfeito com este momento
como algum dia esperou poder vir a estar, tão contente consigo próprio e com os seus feitos como não imagina que algum homem se tenha jamais sentido. Prepara-se para
pedir a Wealthow (que se acha sentada ali próximo na companhia das aias) que lhe torne a encher o chifre de
ouro, mas as pálpebras vacilam-lhe
e fecham-se, e não tarda a
que o Rei dos Dinamarqueses caia num sono profundo e ressone a bom ressonar.
* * *
Durante a noite invernosa, o monstro encaminha-se
a passos largos para Heorot Hall, e todos os seres fogem à sua passagem, todos os pássaros e feras, todos os peixes e
serpentes, todos os outros fantasmas e criaturas inferiores que assombram as
trevas. Ele trepa do lamaçal e do
emaranhado dos pântanos
gelados, içando com
toda a facilidade o seu corpanzil deformado do inferno de lodo para as sombras
profundas da floresta ancestral. E apesar de na sua cabeça ainda ressoar e ecoar a canção dos nobres, sente-se aliviado por
ficar momentaneamente livre da observação constante da Lua, coberto agora por galhos e ramos grossos e
envelhecidos que o protegem quase tão bem como o teto da sua caverna.
— Eu já lhes mostro o que significa silêncio! — vocifera ele e, com um punho
gigantesco, despedaça o tronco
duma árvore,
reduzindo-a num instante a um mero amontoado de lascas de madeira e seiva. «E muito mais fácil será esmagar os ossos dos homens,
derramar o seu sangue», imagina.
E, assim, outra árvore cai,
e depois mais outra, e outra ainda, a violência de cada pancada a alimentar-lhe a fúria e a aproximá-lo do verdadeiro alvo do seu
rancor. As passadas compridas da criatura depressa a levam à orla da floresta e a devolvem à luz da Lua. Agora, ela precipita-se
através das
charnecas, pisando fetos e arbustos por onde quer que passe, espezinhando tudo
o que não se consiga
mexer com rapidez suficiente para lhe sair a tempo do caminho, afugentando os galos-silvestres
e os coelhos dos respectivos abrigos noturnos. Em breve alcança o abismo rochoso que separa as
ameias de Hrothgar das terras interiores. Aqui, detém-se, mas apenas por uns instantes
que mal chegam para recuperar o fôlego, antes de avistar uma sentinela solitária de vigia à muralha. O homem também o vê, e a criatura de imediato reconhece e se apraz com o horror e a
incredulidade que transparecem dos olhos da sentinela.
«Ele não quer crer que eu existo», pensa o monstro, «mas também não pode pôr isso em dúvida.» E então, antes de
o homem ter tempo de gritar e lançar o alerta, a criatura da caverna salta por cima da ravina.
* * *
— Ouviste
aquilo? — pergunta
Unferth a Aesher.
— Aquilo o
quê?
— Parecia
quase um trovão — explica-lhe Unferth, baixando os
olhos para o Sabujo gordo que se encontra aninhado no estrado aos pés de Hrothgar. O animal empertigou
as orelhas e está de olhar
fixo no fundo do salão, na
grande porta de madeira. Os seus lábios recuam deixando os dentes à mostra, e uma rosnadela sumida assoma-lhe da garganta.
— Verdade
seja dita que a cantoria destes palermas não me deixa ouvir nada — resmunga Aesher. — Ah, e aqui
o ressonar do nosso valente rei.
Unferth leva a mão ao punho da espada.
— Estás a falar a sério? — indaga Aesher, levando por sua vez a mão à sua arma.
— Escuta — sibila Unferth.
— Mas
escutar o quê?
O cão levanta-se devagar, os pêlos da nuca eriçados, e
começa a recuar,
aumentando a distância que o
separa da entrada do salão. Entre o
trono e a porta de Heorot, os nobres e as suas damas dão seguimento à sua folia ébria...
— Hrothgar,
Hrothgar!
«Que todas as taças se ergam!
«Hrothgar, Hrothgar!
«AGORA E PARA SEMPRE LOUVADO!
— Mas o que é que lhe deu? — pergunta a rainha Wealthow,
apontando para o cão que rosna
enquanto recua, com a cauda entre as pernas. Unferth limita-se a presenteá-la com um breve olhar antes de se
tornar a virar para a porta. Apercebe-se de que não está trancada.
— Aesher — diz ele. — Vai ver a porta...
Mas é então que algo
se arremessa contra o exterior da porta do salão do hidromel, atingindo-a com força suficiente para a sua estrutura ranger e lascar com um estrondo
ensurdecedor. As dobradiças de ferro
descomunais vergam-se e curvam-se para dentro, e a porta é recortada por inúmeras fendas de alto a baixo; por
agora, contudo, agüenta.
No seu trono, o rei Hrothgar agita-se, e é um ápice até que se
endireita, completamente desperto e atônito. Os nobres interromperam a cantilena, e todos os olhos se
viram para a porta. As mulheres, as crianças e alguns escravos preparam-se para fugir, recuam em direção ao trono e à extremidade oposta do salão, e a maioria dos guerreiros leva
as mãos às espadas e aos punhais, às lanças e aos machados. Unferth desembainha a arma, e Aesher segue-lhe
o exemplo. E em seguida um silêncio terrível e ofegante abate-se sobre
Heorot Hall, como o formidável espaço oco deixado por um raio depois de
atingir uma árvore.
— Unferth — sussurra Hrothgar. — Estamos a ser atacados?
E então, antes que o conselheiro vá a tempo de lhe responder, a porta sofre novo assalto. Ainda agüenta por breves instantes, ao que
cede subitamente, saltando das dobradiças, desfeita em mil e uma lascas aguçadas que, como uma chuva de setas mortíferas, se projetam por cima do
pavimento e dos tampos das mesas e se vão cravar nos rostos e nos corpos de todos quantos se achavam mais
próximos da
entrada. Alguns homens morrem, ou ficam moribundos, esmagados debaixo dos
fragmentos maiores da porta despedaçada, e, entretanto, um abalo percorre o salão a todo o comprimento, uma onda de
som que parece ter a solidez duma avalanche, e a corrente de ar que se forma à sua passagem apaga as fogueiras
onde se assa a carne e todas as velas acesas em Heorot, mergulhando o salão na mais completa penumbra.
Wealthow põe-se de pé, ordenando
às criadas que procurem abrigo, em
seguida dirige o seu olhar para a porta e para a criatura monstruosa à entrada, a sua silhueta recortada
contra o luar. O seu peito arqueja, e o ar sai-lhe como vapor dos lábios negros e das narinas
adejantes. Trata-se seguramente dum terror antigo, pensa ela, um demônio ancestral vindo de épocas remotas, antes de os deuses
terem subjugado Lori Caminhante dos Céus e os seus pérfidos
filhos.
— Senhor meu
rei — diz ela,
mas nesse momento a criatura inclina a cabeça para trás, abre
boca toda e grita. E jamais a rainha Wealthow e os nobres de Hrothgar
ouviram um grito tão terrível e maléfico; um grito que encerra em si a
ruína do
mundo, a queda de reinos, o estrépito da morte, o sofrimento e a própria terra que se rasga no último de todos os dias.
E as próprias paredes de Heorot estremecem perante a força e a fúria daquele grito, e as fogueiras
apagadas reacendem-se subitamente, voltando violentamente à vida. Elevam-se até às vigas do teto e tornam-se pilares rodopiantes de labaredas
incandescentes, projetando uma chuva de brasas cintilantes em todas as direções. Nem a porta nem o monstro são visíveis a partir do estrado do trono, onde a visão é ofuscada pelas chamas. No salão, onde, momentos atrás, ressoavam as canções, as gargalhadas e os ruídos da animada celebração, irrompem os gritos de gente aterrorizada e estropiada, e os
berros furiosos e imprecações dos
guerreiros embriagados que se precipitam atabalhoadamente para as armas. Por
detrás da
barreira de fogo, a criatura avança, vagueando agora livremente sob o teto de Heorot.
Os quatro nobres mais próximos da porta investem contra o
monstro, e este agarra de imediato num deles e serve-se do homem como cacete
humano para agredir os outros três, arremessando dois deles contra cadeiras e mesas. O terceiro é atirado ao ar, impotente como um
boneco, e voa pelo salão a todo o
comprimento, atravessando a torre espiralada de chamas e passando por cima das
cabeças daqueles
que ainda estão sentados
ou enroscados no estrado até que o seu
corpo inerte se esmaga contra a parede por detrás dos tronos de Hrothgar e Wealthow.
— A minha
espada! — grita o
rei, vacilando para se pôr de pé. — Tragam-me a minha espada!
Ainda agarrando o quarto guerreiro por um
tornozelo partido, o monstro detém-se o tempo suficiente para baixar o olhar para o rosto semi-inconsciente
e coberto de sangue, apenas o tempo suficiente para que o homem possa, por sua
vez, erguer o olhar para a cara dele e se aperceber plenamente do
destino que o espera e das graves conseqüências da sua bravura. Depois, quando deixa de ter serventia a dar
ao homem, a criatura arremessa-o para o inferno de chamas. E as labaredas atiçam-se ainda mais que antes, como se
mostrassem gratidão por
poderem devorar o guerreiro em pranto. O monstro emite novo grito, agredindo o
ar e os ouvidos de todos os que se acham encurralados em Heorot Hall com a sua
voz, cujo ribombar prenuncia o Dia do Juízo Final.
Aesher pega na mão da rainha Wealthow e apressa-se a conduzi-la para longe do
estrado. Quando chegam a uma mesa virada, empurra-a para a obrigar a agachar-se
por trás desta.
— Não vos levanteis, senhora — aconselha-a ele. — Ficai aqui escondida e não vos mexeis. Nem para olhar,
sequer.
A verdade, porém, é que ela
olha, pois nunca foi pessoa de se retrair ou esquivar perante cenários de horror. Mal Aesher lhe
larga a mão, Wealthow
espreita por cima da beira da mesa, semicerrando os olhos feridos do clarão das chamas. Todavia, não consegue ver o monstro nem os
nobres que combatem contra ele, apenas as suas sombras distorcidas que se estendem
pelas paredes alumiadas pelas labaredas. As suas silhuetas movimentam-se para
trás e para a
frente como uma paródia macabra
ao teatro de sombras que a mãe em tempos
representava a fim de a ajudar a adormecer. Horrorizada, vê os homens a serem arremessados e
desfeitos como se fossem brinquedos, os corpos rasgados, espetados, empalados
nas suas próprias
armas.
— Mas que
diabo... — sussurra
ela. — Que infortúnio trouxe esta coisa até nossa casa?
— Baixai-vos
— insiste
Aesher, contudo, nesse preciso momento, outro corpo é arremessado através das chamas atroantes, inflamando-se
e rasando por cima da cabeça da
rainha. Esta esquiva-se rapidamente, e o homem morto e incandescente vai
aterrar no meio dum grupo de mulheres acocoradas contra a parede. O fogo
propaga-se avidamente do cadáver para as
roupas e os cabelos das mulheres aos gritos, e antes de Aesher ir a tempo de a
impedir, Wealthow agarra num jarro de hidromel e acorre para junto delas,
encharcando as chamas. Aesher solta uma praga e chama-a, porém, quando ela se prepara para regressar
ao abrigo da mesa, uma acha-de-armas retalha o ar que os separa a ambos, tão perto que a rainha sente o vento
produzido pela lâmina. O
jarro vazio escorrega-lhe dos dedos e estilhaça-se no chão. Em
seguida, Aesher segura-a pelos pulsos e obriga-a a baixar-se, empurrando-a para
a proteção da mesa
virada.
— Viste
aquilo? —
interroga-o ela. — A acha...
— Sim,
senhora minha, a acha-de-armas. Vi que foi por um triz que não vos arrancou a cabeça.
— Não, não foi isso. Viste-a a atingir o monstro? Ela... ela fez ricochete.
Como pode tal coisa ser?
Agora, porém, a atenção da
criatura volta-se para a mesa atrás da qual a rainha e Aesher se refugiam, bem como para o trono,
depois de a acha arremessada a ter distraído dos ataques aos nobres. Numa única passada de gigante, ultrapassa o halo do inferno de chamas, e
Wealthow consegue por fim vê-la nitidamente,
a criatura em si e não apenas
uma sombra ou silhueta. O monstro detém-se para inspecionar a zona de pele ilesa onde a lâmina de aço o atingiu, em seguida estreita os
seus olhos azul-acinzentados tolhidos de fúria e põe à mostra uns dentes quase tão compridos como as presas duma
morsa adulta. Movimenta-se com uma rapidez que Wealthow nunca julgaria possível numa criatura tão descomunal, precipitando-se em
frente, segurando Aesher entre as suas garras e erguendo-o bem acima da cabeça.
— Fugi,
senhora minha, fugi — grita-lhe
este, mas ela não é capaz de se mexer, quanto mais de
correr. Limita-se a ficar a ver a criatura a enterrar profundamente as suas
garras no corpo de Aesher e a rasgá-lo em dois como uma criança poderia partir um molho de galhos. O sangue do conselheiro do
rei cai em redor dela como chuva, ensopando a cabeça e os ombros do monstro e
salpicando o rosto virado para o alto da rainha Wealthow, silvando e crepitando
à medida que salpica para o inferno
de chamas.
— A minha
espada! — brada
Hrothgar e, ao ouvir isto, o monstro atira as pernas e a parte inferior do
tronco de Aesher contra o rei. O grotesco míssil falha o alvo e, ao invés, acerta em Unferth, que tomba esparramado no chão. Desapontada, a criatura deixa
cair o que resta do corpo de Aesher em cima da mesa virada, e os olhos sem vida
do nobre fixam-se em Wealthow.
«Agora é que eu vou começar aos gritos», pensa ela. «Vou começar aos gritos, e nunca mais vou ser
capaz de parar.» Todavia,
tapa a boca com ambas as mãos,
abafando a voz estridente do seu próprio medo, com a certeza absoluta de que será a próxima vítima do
monstro, mesmo que não grite nem
chame a sua atenção.
E é então que vê o marido, que cambaleia para fora
do trono, tendo como única
armadura o lençol que o
envolve, agarrando firmemente dentro do punho cerrado a espada de folha larga,
que emite um reflexo baço à luz das labaredas. Vê também Unferth, que não se
levanta para ir em auxílio do seu
rei, afastando-se a gatinhar custosamente a fim de procurar refúgio nas sombras por detrás do estrado.
— Não! — grita Wealthow ao marido, e o monstro dirige a sua atenção para ela, retirando subitamente a
barreira protetora da mesa com uma mão enorme e calosa. As mesmas garras que despedaçaram o corpo de Aesher cravam-se na
solidez da madeira de carvalho como se esta não fosse mais consistente que a carne ou o sangue. Ergue a mesa por
cima da rainha, empunhando-a como se duma moca se tratasse.
— Vira-te a
mim! — ruge o rei
Hrothgar, tremendo violentamente e brandindo a espada contra as costas do
invasor. — Deixa-a em
paz, diabos te carreguem! Vira-te a mim!
E, a todo o seu redor, o salão parece mergulhar no silêncio e na imobilidade, a coragem
tendo abandonado os nobres sobreviventes, o terror agora mais abundante que os
heróis. A fera
torna a mostrar os dentes e baixa o olhar exultante de triunfo para a rainha
Wealthow, mas nem assim esta se consegue mexer. Limita-se a ficar postada, a
olhar para o marido à espera da
pancada que a irá esmagar e
libertar deste mundo onde demônios como
este têm permissão para errar pela noite.
— Eu mandei
que te virasses a mim, seu filho-da-mãe! — berra-lhe
Hrothgar, agredindo a criatura, mas a sua espada desvia-se inocuamente sem
sequer lhe ferir a pele. — Com
certeza não vieste de
tão longe
para matar mulheres. Vira-te a mim!
E agora Wealthow repara nas lágrimas que sulcam as faces de
Hrothgar, e, lentamente, o monstro afasta-se dela e vira a sua atenção para o rei. Subitamente,
encarando Hrothgar, a criatura começa a gemer e a lastimar-se, guinchando de dores como se todo o seu
corpo estivesse a ser sacudido por estranhas convulsões. Os seus músculos são acometidos por espasmos, e as
articulações emitem
sonoros estalidos à semelhança dos ramos das grandes árvores fustigados pelo feroz
vendaval Mörsugur.
— Isso — insiste Hrothgar. — E isso mesmo. Vira-te a mim.
A criatura dá dois passos hesitantes atrás, retrocedendo perante o rei de Heorot Hall, ébrio e enrodilhado nos seus lençóis. Acha-se agora mesmo sobranceira
a Wealthow, as suas pernas formando uma passagem em arco mesmo por cima da cabeça dela. Choraminga, a baba da cor
do pus a escorrer-lhe dos lábios e a
formar uma poça aos pés dela. E o monstro torna a rugir,
desta feita, porém,
transparece mais mágoa e desânimo que qualquer outra coisa
daquele som aterrador.
— A mim — continua Hrothgar, brandindo a
espada e percorrendo metade da distância que o separa do monstro, que o separa de Lady Wealthow.
— NNNNÃÃÃÃãããããããããão! — grita a criatura, o seu hálito fétido arrojando aquela só palavra com força suficiente para fazer Hrothgar
tombar para trás e cair,
perdendo o lençol e
aterrando nu em cima do traseiro, a espada a retinir estrondosamente no chão. E em seguida, com a mão direita, o monstro agarra em dois
dos guerreiros caídos e
projeta-os pelo ar, desaparecendo pela chaminé por cima da fogueira. Levanta atrás de si uma terrível rajada
de vento e, por um breve instante, as chamas atiçam-se ainda mais, um clarão empolado e ofuscante de calor e luz, e o salão fica às escuras e a noite ventosa acorre
a preencher o vazio.
A escuridão traz consigo um silêncio de choque, interrompido apenas pelos soluços e os estertores agonizantes dos
moribundos. Alguém acende um
archote, depois outro. Não tarda, a
noite é fendida
por poças
tremeluzentes de luz amarela, e Wealthow vê com os seus próprios olhos
a destruição reinante
no salão do
hidromel. Unferth emerge da penumbra, agarrando a espada como alguém que não é covarde. O brilho dos archotes reflete-se palidamente no colar de
ouro retorcido que traz ao pescoço. Wealthow aproxima-se do marido, trêmulo e choroso, e ajoelha-se a seu
lado, pegando no lençol e
tapando-o. Ainda não acredita
que está viva e que
respira.
— O que foi
aquilo? — pergunta
ela a Hrothgar, e ele abana a cabeça e fixa os olhos no buraco negro da chaminé.
— O Grendel — responde-lhe. — Aquilo era o Grendel.
CAPÍTULO II
ESTRANHOS
ESPÍRITOS
Pegajoso do sangue seco dos guerreiros massacrados
e encardido da fuligem da chaminé de Heorot, Grendel regressa à sua gruta para lá da
floresta. Postado à entrada,
pressente o olho da Lua a vigiá-lo, vem a
sentir o seu olhar a arrepiar-lhe a pele desde que abandonou o salão do hidromel. Foi a vigiá-lo durante todo o caminho para
casa, seguindo o seu rasto lento no regresso através das charnecas, por entre a
floresta adormecida e na travessia dos pântanos. Relanceia por cima do ombro e olha para o céu. Máni já deu início à sua descida na linha do horizonte, a ocidente, e não tardará a desaparecer por detrás das copas das árvores ancestrais.
— Julgavas
que eu não era capaz
de me desvencilhar-me sozinho? — pergunta
Grendel à Lua. — Julgavas que eu não teria coragem?
A Lua, porém, não lhe
responde. Nem Grendel estava à espera
disso. Tanto quanto sabe, o filho de Mundilfaeri é mudo e nunca proferiu uma só palavra em toda a sua longa existência, pairando no céu noturno. Grendel suspira e baixa os olhos para os dois cadáveres que trouxe consigo desde
Heorot, depois afasta-se do luar para se refugiar na escuridão reconfortante da caverna.
Não tem memória dum
tempo em que esta caverna não fosse o
seu lar. Por vezes pensa que deve ter nascido aqui. Não muito longe da entrada, há uma lagoa de águas límpidas e tranqüilas, emoldurada por estalactites
pendentes e gotejantes e estalagmites aguçadas que se projetam do chão da gruta. Sempre lhe fizeram lembrar dentes, e, por conseguinte,
a lagoa é a garganta
da caverna — talvez
mesmo a garganta de toda a terra — e, assim, talvez ele seja apenas uma coisa qualquer que a terra
cuspiu, um bocado indigesto duma refeição que lhe caiu mal, quem sabe.
Grendel atira os guerreiros mortos para um
grande amontoado de ossos que se acha a um canto da caverna, próximo da beira da lagoa. Aqui, os
ossos empalidecidos dos homens jazem misturados com os resquícios de outros animais — os crânios guarnecidos de hastes de
possantes veados adultos, os esqueletos em decomposição de ursos e focas, de lobos e javalis.
Enfim, seja lá o que for
que consegue apanhar e matar, e, em toda a sua vida, Grendel nunca se deparou
com nada que não conseguisse
matar. Aliviado do seu fardo, vira-se para a lagoa e contempla o seu próprio reflexo nas águas tranqüilas. No escuro, os seus olhos
cintilam tenuemente, as íris
salpicadas de dourado.
— Grendel? — chama-o a mãe. — Hwaet oa him weas?
Surpreendido e assustado por ouvir a sua voz, a
música melódica e cristalina das suas
palavras, ele vira-se de imediato, revoluteando precipitadamente em volta de si
próprio e por
pouco não perdendo
o equilíbrio.
— O que é que tu andaste a fazer, Grendel?
— Mãe? — chama ele por sua vez, perscrutando a escuridão da caverna à procura dalgum indício materno para além da voz. — Onde é que está? — Deita uma olhadela ao teto, a imaginar se a voz da mãe não teria vindo algures lá do alto.
— Os homens?
Grendel... Julguei que tínhamos um
acordo no que aos homens diz respeito.
Sim, ela devia estar no teto, a vigiá-lo dalgum recanto secreto e
obscuro mesmo por cima dele. Mas é então que ouve
um sonoro chape vindo da lagoa, e Grendel dá por ele encharcado de água gelada.
— Os peixes,
Grendel. Os peixes, os lobos e os ursos. De quando em vez, uma ovelha ou outra.
Os homens, porém, não.
Ele torna a voltar-se lentamente para a lagoa,
e lá está a mãe, à sua
espera.
— A mãe gosta dos homens — diz-lhe Grendel. — Olhe... — Pega num dos nobres mortos, o
menos mutilado dos dois, e oferece-lho.
— Não — recusa ela em tom peremptório. — Esses
seres frágeis, não, meu querido. Não te esqueças duma coisa: eles hão de fazer-nos mal. Já mataram tantos dos nossos... da
nossa espécie... os
gigantes, os dragões. Têm-nos perseguido quase até à extinção. E também te hão de perseguir a ti se não perderes o hábito de os matares.
— Mas eles
estavam a fazer uma barulheira tremenda. Estavam numa pândega que nem imagina... e estavam
a magoar-me. A magoar a minha cabeça. Eu nem era capaz de pensar de tanto barulho e tantas dores. — E Grendel torna a estender-lhe o
nobre morto. — Tome, mãe, este aqui é amoroso. Eu já lhe descasquei todas as partes de
metal.
— Pousa-o,
Grendel.
E ele assim faz, deixando-o cair na lagoa, onde
mergulha momentaneamente para logo regressar à superfície. O
sangue começa de
imediato a manchar a água límpida. Grendel está agora a chorar, e sente vontade de
fugir, de tornar a fugir para a noite onde apenas a Lua o pode ver.
— O Hrothgar
estava lá? — interroga-o a mãe, com um laivo de irritação na voz.
— Eu não lhe toquei.
— Mas viste-o?
Ele viu-te?
— Sim, mas
eu não lhe fiz
mal.
A mãe fecha os seus olhos grandes e cintilantes por um instante e em
seguida fita-o durante mais alguns segundos, e Grendel percebe que ela procura
algum indício de que
o filho lhe possa estar a mentir. Quando não encontra nenhum, desliza graciosamente para fora da lagoa,
movimentando-se com a mesma facilidade da água a fluir por cima das pedras, ou do sangue a jorrar da lâmina dum machado. Estende um braço para tocar em Grendel, o seu
corpo escamoso e forte, úmido e
ainda mais reconfortante que o refúgio escuro da sua gruta. A mãe limpa-lhe um pouco do sangue e da fuligem que traz agarrados às faces e à testa.
— Eu não lhe toquei, mãe — insiste Grendel uma terceira vez.
— Eu sei — sossega-o ela. — És um lindo menino.
— Eu já não agüentava
mais.
— Meu pobre
filhinho, tão sensível — arrulha ela. — Promete-me
que não tornas a
ir lá. — Grendel, todavia, limita-se a
fechar os olhos e a tentar afastar dos pensamentos as árvores desmembradas e os corpos
desfeitos, a evitar que a sua mente se alongue na algazarra dos homens, no ódio que sente, na linda mulher de
cabelos dourados que ele teria matado, uma última vítima, não o tivesse Hrothgar impedido.
CAPÍTULO III
ATAQUES
NOITE DENTRO
Os ataques de Grendel não terminaram depois do primeiro
assalto a Heorot. Alguns rancores são demasiado antigos e profundos para se darem por satisfeitos com
uma única noite
de terror e massacre. Noite após noite,
ele regressava, o ódio e a
aversão que tinha
aos dinamarqueses a impelirem-no repetidamente para fora da sua caverna,
decidido a pôr fim duma
vez para sempre ao burburinho no salão de Hrothgar. Dali em diante, não haveria mais noites ensurdecedoras, dolorosas. Deixaria de haver
folguedo. E, à medida que
a invernia ia apertando cada vez mais o cerco em volta da terra, até a neve formar uma crosta de gelo e
o sol não passar
duma vaga recordação de verões que talvez nunca mais voltassem,
a dádiva de
Hrothgar ao seu povo transformou-se num lugar amaldiçoado e temido. Grendel, porém, não restringiu os seus assaltos apenas ao salão, atacando indiferentemente novos
e velhos, homens, mulheres e crianças, fracos e fortes, desde que a oportunidade lhe surgisse.
Dominava Heorot, indo e vindo como muito bem entendia e fazendo do salão do hidromel o troféu mais prezado da sua guerra solitária, mas também errava pelas charnecas e pelos
bosques ancestrais, pelas quintas e habitações, atacando quem quer que se cruzasse no seu caminho.
E a notícia correu, nas canções dos escaldos, nos relatos sussurrados dos viandantes e
mercadores, do destino nefando que se abatera sobre o reino de Hrothgar.
Numa manhã gélida, em
que o gelo mais se parece com aço e o Sol
ainda não se dignou
a dar um ar da sua graça, o rei
encontra-se deitado com a sua rainha num colchão macio de palha, envolvido numa coberta de lã e peles de veado. Hrothgar abre os
olhos, sem saber ao certo o que foi que o acordou, mas logo vê Unferth postado ao lado da sua
cama.
— Senhor
meu? — chama-o
Unferth num murmúrio, para não perturbar a rainha Wealthow. — Senhor meu, voltou a acontecer.
E Hrothgar tem vontade de fechar os olhos e
fazer um esforço por
tornar a mergulhar no sono, voltar a sonhar com dias de sol ameno e noites sem
monstros, todavia, quando os abrisse novamente, Unferth continuaria lá. Apressa-se a vestir-se, fazendo o
menor ruído possível, procurando não acordar a mulher, em seguida
acompanha Unferth até Heorot. Não tarda, acha-se ao frio, com
Unferth, Wulfgar e mais alguns nobres, à porta do salão do
hidromel, à porta nova
do salão, reforçada com grandes cintas de ferro e,
sem exagero, duas vezes mais grossa que a que Grendel estilhaçou.
— Quantos,
desta feita? — pergunta
Hrothgar, o seu bafo a adensar-se como fumo.
Unferth respira fundo e engole em seco antes de
lhe responder. — Para ser
franco, não sei. Os
corpos não ficaram
intactos. Cinco. Dez, talvez. Era o copo-d’água da filha do Nykvest.
— O Grendel
agora vem com cada vez mais freqüência. — Hrothgar
solta um suspiro e cofia a barba. — Por que é que o demônio não se limita a fazer do meu salão a sua casa para se poupar ao trabalho de ter de calcorrear a
charneca para cá e para lá todas as noites?
Hrothgar baixa os olhos e repara numa mancha vermelho-rosada
a escoar por debaixo da porta.
— A porta
nova não tem um
arranhão sequer — constata ele, batendo furiosamente
na madeira dura com a palma da mão aberta.
— Pois não — assente Unferth. — É óbvio que o demônio do Grendel chegou e partiu
através daquela skorsten.
— E aponta
para a abertura da chaminé no telhado
de Heorot Hall. Hrothgar dá imediatamente
pela presença do
sangue, espalhado pelo telhado de colmo, depois na neve por baixo do beirai,
salpicando as pegadas descomunais do monstro. O rasto prolonga-se para longe do
recinto e desvanece-se na neblina.
O rei respira fundo e exala mais vapor, depois
esfrega os seus olhos remelentos.
— Quando eu
era novo, matei um dragão em
Northern Moors — afirma
ele, e Unferth pressente-lhe um laivo de tristeza ou arrependimento na voz. — Mas agora estou velho, Unferth. Já não tenho idade para andar à caça de demônios. Precisamos dum herói, um herói jovem e astucioso, que
seja capaz de nos livrar da maldição que se abateu sobre o nosso salão.
— Oxalá tivésseis um filho, meu senhor — diz Wulfgar, recuando um passo da porta e do sangue que alastra
pela soleira. As suas botas trituram pesadamente o solo gelado.
*
* *
«Está um dia da cor das sepulturas», pensa o rei Hrothgar,
contemplando desoladamente o mar irado e imaginando os trajes cinzentos de Hel,
e o fulgor baço dos seus
olhos cinzentos que aguarda todos os homens que não perecem no campo de batalha nem no desempenho de qualquer outro
feito heróico, todos
os homens que se permitem enfraquecer e definhar em torres de pedra. Pois mesmo
os homens corajosos que matam dragões na juventude podem morrer de velhice e acabar por se verem
convidados de Éljudnir, o
salão úmido da chuva de Hel. Atrás dele, Unferth está sentado a uma mesa, concentrado na
tarefa de contar moedas de ouro e outras peças do tesouro. E Hrothgar pergunta-se que recanto sombrio de Niflheim
terá sido
preparado para os receber a ambos. Já começou a ver as
portas de Hel em sonhos, pesadelos em que persegue e enfrenta o monstro Grendel
uma vez e outra, e outra ainda, mas em que o demônio se esquiva sempre a dar-me luta, recusando-lhe até o obséquio duma morte heróica.
Estes pensamentos melancólicos são interrompidos por passos e pelo
som da voz de Wulfgar, e o rei afasta-se da janela.
— Estás a ouvir? — pergunta ele a Wiglaf.
— Eu cá não ouço nada,
senhor meu, para além do mar,
do vento e das gaivotas.
— A canção, Wiglaf — diz-lhe Beowulf. — E a mãe do Grendel, a mulher da lagoa...
a mãe do meu
filho... a minha... — Nesse
momento, porém, a sua
voz desvanece-se, a sua atenção abstraída pelas dores, e ele sem saber que
palavra proferir em seguida, se amante ou mãe, se inimiga
ou sina.
Torna a abrir os olhos, pois agora a música está tão alta que não precisa
de se esforçar tanto
para a distinguir do barulho do mar. Wiglaf olha-o fixamente, e Beowulf nunca o
viu com um ar tão
assustado.
— Não, senhor meu. Não digais coisas dessas. Vós matastes a mãe do Grendel. No tempo em que ambos
éramos ainda uns jovens. Está na saga...
— Então a saga não passa duma mentira. — Beowulf corta-lhe a palavra
elevando a voz, zangado e quase aos gritos, e Wiglaf sente qualquer coisa a soltar-se
dentro do peito. — Uma mentira
— reitera
ele. — Wiglaf, tu
sabes que é mentira.
Sempre soubeste. Wiglaf não profere
uma só palavra, e
Beowulf torna a fechar os olhos, desejando apenas ouvir a canção que flutua até ele vinda do mar.
— E já é tarde demais para mentiras — sussurra ele. — Tarde
demais...
Uma onda inunda a margem, encharcando Wiglaf, e
quando este torna a olhar para o rosto empalidecido de Beowulf, apercebe-se de
que se encontra sozinho na praia. O rei Beowulf morreu.
EPÍLOGO
A
MORTE DE Beowulf
No centro do mundo, encontra-se o freixo
Yggdrasil, a maior e a melhor de todas as árvores, e, por baixo das raízes de Yggdrasil, habitam três donzelas — as Nornas — que trabalham sem cessar, atarefadas
diante dos seus teares, fiando e dando forma às vidas dos homens e das mulheres, tecendo o que podem a partir do
caos e das infindas possibilidades. Até mesmo os deuses de Ásgard não passam de
fios nas mãos das
Nornas, e até mesmo
eles, à semelhança dos homens mortais e dos
gigantes, não têm qualquer acesso à urdidura das suas vidas nem
conhecem a sentença daqueles
dedos ágeis e
incansáveis.
Apenas estas três donzelas,
que laboram sob as raízes do
Freixo do Mundo, conhecem o comprimento de cada fio. E o mesmo se passou com
Beowulf, que sempre ambicionou a glória e a morte audaz que só deve ser ambicionada por aqueles que desejam ser recebidos no salão de Odin e combater ao lado dos
deuses na derradeira batalha, quando Ragnarok chegar e os filhos de Loki Caminhante
dos Céus, Aquele
Que Tudo Muda, forem uma vez mais soltos no cosmos. No instante do seu
nascimento, as Nornas já tinham tecido
o destino de Beowulf e, em todas as lutas que travou até ao dia da sua morte, sempre se
limitou a seguir o curso desse fio.
São estes os pensamentos do novo Senhor dos Dinamarqueses neste dia
de Inverno, o dia do funeral de Beowulf. O rei Wiglaf, filho de Weohstan e duma
peixeira geata, acha-se sozinho, afastado de todos os outros que vieram
despedir-se do velho rei. Hoje ele usa a coroa que ainda recentemente era
pertença de
Beowulf, e do rei Hrothgar antes dele, retrocedendo pela linhagem de Hrothgar
até Scyld
Sheafson. Do ponto onde se encontra em meio aos rochedos à beira-mar,
Wiglaf contempla nas ondas de crista espumosa,
o Sol que se põe e no
barco fúnebre.
Trata-se do mesmo barco com proa de dragão com que ele, Beowulf e restantes guerreiros geatas, trinta anos
atrás,
cavalgaram as águas
tempestuosas de Jótlandshaf
para alcançar a costa
desta terra amaldiçoada por
demônios, e que
agora transportará Beowulf na
sua derradeira viagem desde as muralhas de Midgard até à ponte de Bilröst.
Veio tanta gente — os sobreviventes do ataque do dragão a Heorot, bem como forasteiros dos quatro cantos dos reino dos
Ring-Danes. Reuniram-se na costa agreste, em silêncio ou murmurando uns com os outros. Um jovem bardo encontra-se
postado num penhasco virado para o mar, a curta distância de Wiglaf, entoando com uma
voz alta e clara que se propaga pela praia tingida pelo crepúsculo.
Pela rota das baleias ele veio E da
nossa terra fez o seu lar...
Dez guerreiros robustos ocuparam as respectivas
posições, cinco
de cada lado do barco fúnebre.
Preparam-se para navegar a todo o pano, e o vento do anoitecer açoita e agita os cabos dos mastros.
Catorze dos melhores escudos de batalha jamais construídos ladeiam o cintado quer a
estibordo, quer a bombordo, e a embarcação fúnebre foi
recheada de tesouros, de ouro, prata e bronze, e de espadas, machados e arcos,
de elmos e reluzentes cotas de malha. Todos estes objetos preciosos serão sepultados junto de Beowulf a seu
pedido, para que ele possa cavalgar pelas vastas planícies de Idavoll devidamente
equipado. O seu esquife de carvalho destaca-se no centro do tesouro, e Beowulf
jaz ali, envergando as suas melhores peles e a sua armadura.
Os guerreiros empurram laboriosamente e a
grande custo, mas por fim lá conseguem
fazer deslizar o navio pela areia até à rebentação gélida. De imediato, o barco é apanhado por uma corrente que o vai afastando da margem através dum magnífico arco marítimo, uma ancestral abóbada de granito esculpida pelo
vento, pela chuva e pelo próprio mar.
No alto da abóbada
sobranceira ao mar, encontra-se um destacamento de soldados que vigiam a imensa
fogueira de cedro aí construída.
Wiglaf inspira profundamente o ar frio e salgado,
fazendo as suas despedidas em silêncio, enquanto observa o barco a ser conduzido pelo vento e pela
corrente na direção da abóbada de pedra. A voz do bardo
eleva-se quando a canção está prestes a chegar ao fim.
Tanto sangue onde tantos pereceram
Trazido até à margem por uma maré carmesim.
Tal como agora, também então não havia misericórdia.
Cães de guerra roíam os ossos dos homens.
Bravos e fortes caíram na luta
Alimentando o apetite voraz da
Morte.
Apenas um com um coração de rei
Os libertou. E a ele que louvamos.
Wiglaf avista o franzino padre cristão com a sua indumentária vermelha, pairando em volta da
rainha e segurando o estandarte de Jesus Cristo, no entanto, o irlandês não desempenha qualquer papel formal nesta cerimônia. Estes são os antigos costumes, que vão desaparecendo gradualmente da
terra à medida que
uma nova e estranha religião se
apodera dela, mas eram os costumes de Beowulf, e continuam também a ser os costumes do rei Wiglaf,
e, por conseguinte, serão honrados
e observados neste dia.
A rainha Wealthow acha-se de mão dada com Ursula, e Wiglaf tem
esperança de que,
juntas, possam encontrar consolo para a dor da perda e o terror. Wealthow
continuará a ser
Senhora de Heorot, a rainha scylding, embora Wiglaf esteja decidido a
respeitar a sua vontade e a não lhe pedir
que o despose.
O navio fúnebre navega sob a abóbada e, quando sai pela extremidade oposta e se dirige ao mar
alto, os soldados encarregues da pira pegam em varas compridas e empurram-na
para fora dos penhascos. Uma brilhante cascata de cinzas incandescentes e tições flamejantes projeta-se das
rochas e chove sobre os mastros e o convés do navio com proa de dragão. Não tarda,
toda a embarcação está a arder.
A canção do bardo chega ao fim, e Wiglaf deixa-se ficar momentaneamente a
ouvir o bramido voraz das chamas, das ondas e do vento, o murmúrio sumido e triste da multidão. A biga do Sol já desceu sobre o horizonte, e Wiglaf
tem a impressão de ver um
enorme olho carmesim que contempla o barco em chamas e os enlutados reunidos na
margem. O olho resplandecente forma uma moldura de nítido contraste com as velas a arder
do navio fúnebre. E,
por fim, o rei Wiglaf toma a palavra, elevando a voz para se fazer ouvir.
— Ele era o
mais audaz de todos nós. O príncipe de todos os guerreiros. O seu
nome viverá para
sempre. Ele... — Agora, porém, o nó que lhe aperta a garganta torna-se
dolorosamente insuportável, e Wiglaf
vira a cabeça para que
ninguém veja as lágrimas que lhe escorrem pela face.
— A sua canção — diz a rainha — será cantada para sempre. Enquanto o
mundo for mundo, os relatos dos seus feitos audazes haverão de ser contados.
E, em seguida, resta apenas o vento e a espuma
das ondas, e o navio fúnebre de
Beowulf foi arrastado para o mar alto. Pouco a pouco, os enlutados começam a retirar-se, enfileirando-se
pela estrada que serpenteia dos penhascos escarpados até ao castelo. Wiglaf observa
Wealthow e Ursula a afastar-se, ele, porém, não as
acompanha, decidido a ficar de vigília enquanto o navio flutuar, enquanto arder. A sua memória recua até a um dia trinta anos atrás, ele e Beowulf no convés oscilante, rodeados por um mar
enfurecido e tempestuoso.
«O mar é a minha mãe!», declarara
um Beowulf todo ufano. «Ela
cuspiu-me vai para uns anos e nunca mais me há de querer de volta ao seu ventre tenebroso!»
E então que Wiglaf ouve algo trazido pelo vento, um lamento sem
palavras, e dirige um olhar atento para o mar, procurando a origem do barulho.
E enquanto contempla as águas, agora
ensangüentadas
pelo ocaso e pelas chamas do navio fúnebre, o lamento começa a tomar outra forma, transformando-se numa linda canção, uma canção mais melodiosa que qualquer outra
que algum dia lhe tenha chegado aos ouvidos ou que ele tenha imaginado que
pudesse existir.
«A canção, Wiglaf. A mãe do Grendel, a mulher da lagoa.»
E em seguida vê-a, a silhueta duma mulher montada na proa do navio do dragão envolto em chamas. O sol poente
reflete-se na pele, e depois ela desliza silenciosamente para o mar. Livre da
sua passageira, o barco aderna para bombordo e de imediato se começa a afundar. Wiglaf abandona os
rochedos e apressa-se a descer até à areia,
onde repara em qualquer coisa metálica a cintilar enquanto flutua ao sabor das ondas. A princípio julga tratar-se simplesmente de
qualquer objeto que caiu do barco do rei defunto, que talvez se tenha soltado
devido ao impacto da cascata de fogo. Todavia, quando se baixa para o apanhar,
depara-se com a taça de ouro
em forma de chifre, duas vezes perdida e uma vez mais recuperada. Pega nela,
contrariando o conselho dum recanto mais prudente da sua mente de que talvez
ficasse melhor se a deixasse continuar onde está, desse meia-volta e seguisse os restantes pelo penhasco acima até ao castelo. Wiglaf deixa-se ficar
com o mar a banhar-lhe nos pés e o
chifre na mão,
apercebendo-se de que nunca até agora
apreciou devidamente a elegância com
que foi construído. Torna a
dirigir o olhar para o mar, que escurece rapidamente à medida que o Sol desaparece no
horizonte.
Ela começa a elevar-se das águas, a mãe de pele dourada do demônio Grendel, a mãe do dragão que foi o único filho de Beowulf. Interrompe o
seu cântico e
sorri, apontando para Wiglaf com um longo dedo. Wiglaf dá um passo hesitante na sua direção, a água a marulhar-lhe em volta dos seus tornozelos, causando-lhe a
impressão de o
arrastar para a frente. Já só lhe resta uma percepção vaga do navio fúnebre, à medida que a sua proa esculpida se
empina no ar e ali paira uns instantes, antes de tornar a deslizar para baixo e
ser tragada pelo oceano. A água silva e
fumega enquanto as profundezas acolhem os restos mortais de Beowulf, filho de
Ecgtheow, nos jardins de AEgir.
— Um homem
como tu — diz ela — podia protagonizar as histórias mais ilustres jamais contadas.
— E Wiglaf, filho de Weohstan, contempla
intensamente os olhos cor de mel desta mulher vinda do mar. Na sua mente,
ressoa a sedutora tentação das suas
promessas, mas isso não o cega
para o elevado preço a pagar,
o preço que já tantos homens antes dele pagaram.
— Um homem
como tu — insiste ela,
estendendo uma mão para o
geata.
— Poderia
percorrer qualquer caminho que quisesse — replica Wiglaf, e o mar gélido detém-se a seus
pés. — Eu bem sei quem tu és, mulher demoníaca, e também sei que falas de glória, de riqueza e fama e, não tivesse eu visto o que já vi, esse seria o melhor presente
que o pobre filho dum peixeiro poderia receber.
— Tal e qual
— sorri a mulher da lagoa, pois os
seus muitos anos concederam-lhe a perícia de saber esperar, tendo à sua frente mais tempo que a mente de qualquer mortal possa
abarcar.
E as Nornas — Urdr, Verdandi e Skuld —, as três sinas que
tecem laboriosamente sob as raízes de
Yggdrasil, observam o progresso doutro fio bem esticado nos seus teares. Pois
cada fio é um
assombro para elas, e assim vão tecendo e
esperando com a paciência de
todas as criaturas imortais.
UM GLOSSÁRIO DE TERMOS ESCANDINAVOS, ISLANDESES, ANGLO-SAXÕES E EM INGLÊS ANTIGO QUE SURGEM
NO ROMANCE
AEgir — na mitologia escandinava, a personificação do mar, marido da deusa Rán, pai de nove filhas (as ondas, as
vagas); sinônimo de mar
na poesia escandinava. AEgir é por vezes apresentado como um
gigante, embora isto seja pouco verosímil.
aeglaeca — usado em referência à mãe de
Grendel (Grendles modor); anglo-saxão, «terrível adversário», «lutador
feroz».
AEsir — os principais deuses do panteão escandinavo, incluindo Odin,
Baldr, Bragi, Loki, Vé, Heimdall,
etc; exclui os deuses referidos como Vanir, contra quem os
AEsir combatem.
aglaec-wif — anglo-saxão, usado para referir a mãe de Grendel (Grendles modor); a
tradução deste
termo encontra-se rodeada duma certa controvérsia. O Dictionary of Old English tradu-lo como «mulher guerreira, mulher temível». Autores de épocas anteriores
traduziram-no como «mulher do
monstro» e «mulher monstruosa», no entanto, essas mesmas traduções de Beowulf vertem aglaeca
e aeglaeca para «herói» ou «guerreiro» quando se referem ao próprio Beowulf.
Árvak — escandinavo, «madrugador», um dos cavalos que puxam a biga
da deusa Sól.
Alsvin — escandinavo, «o mais veloz», um dos dois cavalos que puxam a
biga do Sol; também Alsvid.
Ásgard — o lar dos
AEsir, literalmente «recinto dos
AEsir».
Ásynja — feminino
de AEsir.
Audhumla — no mito escandinavo da criação, a primeira vaca, que lambeu o
primeiro deus, Búri, libertando-o
assim do gelo salgado.
Aurgelmir — «vociferador de cascalho», pai da raça dos
Gigantes de Gelo; também conhecido
por Ymir.
Bestla — uma das Gigantes do Gelo, mãe dos deuses Odin, Vé e Vili, mulher de
Borr (Burr), filha de Bolthorn.
Bilröst, ponte de — também conhecida por Ponte de Bifrost, a Ponte do Arco-íris, etc; uma grande ponte que
estabelece a ligação entre os AEsir
e Midgard, o reino dos homens, que será destruído quando
de Ragnarok.
Bragi — deus da poesia escandinava, filho
de Odin.
Bronding, clã — uma tribo germânica, provavelmente
instalada na ilha sueca de Brännö, a oeste da Västergötland, no Kattegatt (uma enseada do mar Báltico); Brecca, o amigo de infância de Beowulf, pertencia a este
clã.
Búri — o deus primordial do panteão nórdico, pai de Borr, avô de Odin.
Crepúsculo do
Deuses — Ragnarok.
Dökkálfar — na mitologia escandinava, os «gnomos negros» subterrâneos; também conhecidos por Svartálfar («gnomos pretos»). Possivelmente sinônimos de anões (dvergar).
einherjar — na mitologia escandinava, os espíritos daqueles que sofreram uma
morte audaz em combate e que, como tal, residem em Valhalla, junto de Odin, à espera de Ragnarok; também einheriar, singular einheri.
Éljudnir — o salão de Hel,
no inferno escandinavo.
Fenrir,
Fenrisulfr — na mitologia
escandinava, o grande lobo, filho de Loki e da gigante Angrboda. Fenrir
foi acorrentado pelos AEsir, um dia, porém, haverá de crescer
tanto que conseguirá rebentar
as correntes e devorar Odin durante Ragnarok, antes de morrer às mãos do filho de Odin, Vidar.
Frermánudr — mês do gelo, décimo
segundo mês do antigo
calendário
escandinavo, indo sensivelmente de meados de Novembro a meados de Dezembro, mês do Yule; também conhecido por Ylir.
Fyrweorm — literalmente «verme de fogo»; dragão.
Gandvik — provavelmente antiga designação do mar Báltico; há também traduções em que
aparece também como
Grandvik.
Geata — a tribo de Beowulf, a um povo que
viveu no que território que
corresponde atualmente à Suécia, na Götaland («Terra dos Geatas»); os godos.
Ginnunga, buraco de
— um vazio
ou caos primordial que existiu antes de o mundo ser ordenado; também conhecido por Ginnungagap.
Gjöll — na mitologia escandinava,
um dos onze rios (os Élivágar) cuja nascente é o Hvergelmir (a fonte de todo o
frio), em Niflheim. Os
Élivágar («ondas de gelo») flutuam
através do buraco
de Ginnunga; Gjöll é também o nome usado para a pedra à qual Fenrir se acha acorrentado.
Gladsheim — o grande salão de Odin, em Valhalla, localizado
na planície de Idavoll
no interior de Ásgard, onde se
sentam os AEsir e os valorosos einherjar.
Gleipnir — a força que prende o lobo Fenrir, da
qual se diz que é fina como
uma fita de seda e mais resistente que uma corrente de aço; forjada pelos anões de Svartálfheim a partir de
seis ingredientes: o barulho da passada dum gato; as raízes duma montanha; os tendões dum urso; a saliva dum pássaro; a barba duma mulher; e o hálito dum peixe.
Gram — a espada empunhada por Siegfried
(também Sigurd)
para matar o dragão Fafnir.
Gullinkambi — escandinavo, literalmente «crista dourada», é o nome do galo que mora em Gladsheim, em Valhalla, e
cujo cantar todas as alvoradas acorda os einherjar, e que haverá igualmente de assinalar o início de Ragnarok.
Heathoreams — uma tribo germânica que habitou em Oslo, na
Noruega, nos séculos V e VI.
Heimdall — filho de nove mais diferentes,
Heimdall é o guardião dos deuses, que, em caso de o
perigo rondar Ásgard, está incumbido de tocar o larhorn («chifre de toque»); também Heimdallr.
Hertha — outro dos nomes por que a deusa Nerthus
é conhecida
(ver Nerthus).
Hildeburh — filha do rei dinamarquês Hoc e esposa do rei frísio Finn.
Hraesvelg, Hraesvelg
Corpse-swallowe — uma águia gigante cujas asas ao bater
criam o vento do mundo.
Hymir — um gigante que possuía um caldeirão descomunal que lhe foi roubado
por Thor para fermentar hidromel para os AEsir.
Idavoll — na mitologia escandinava, a planície onde se situa Ásgard.
Jörmungand, Jörmungand Loki-son, Jörmungandr — um dos filhos monstruosos que Loki
teve da gigante Angrboda; Serpente do Mundo, ou Serpente de Midgard,
esta grande cobra foi aprisionada nos mares por Odin, tendo
entretanto crescido tanto que circunda o mundo inteiro.
Jótlandshaf — também conhecida por Skagerrak; um estreito entre a Noruega, a Suécia e a Dinamarca que estabelece a
ligação entre o
mar do Norte e o mar Báltico.
Jötnar — os gigantes (singular jötunn).
Jotunheimr — a casa dos gigantes, também conhecida por Jotunheim, que
habitam por detrás da grande
muralha de Midgard.
Loki, Loki
Caminhante dos Céus — filho dos gigantes Fárbauti e Laufey e irmão adotivo de Odin, Loki foi
responsável pelo
assassinato do deus Baldr. Como castigo, os AEsir acorrentaram-no a três lajes de pedra e colocaram-lhe
por cima uma serpente, cujo veneno cauterizante lhe pinga para os olhos. Quando
ele se contorce, a terra estremece. Loki será libertado quando de Ragnarok, onde ele enfrentará e derrotará Heimdall, mas acabará por morrer dos ferimentos sofridos.
Lyngvi — a ilha onde os AEsir prenderam
o lobo Fenrir. Lyngvi fica situada num lago conhecido por Ámsvartnir («vermelho-negro»).
Máni — filho dos gigantes Mundilfaeri e
Glaur, Máni é o deus escandinavo da lua. Todas
as noites ele leva a lua através dos céus, perseguida pelo lobo Hati.
Quando Ragnarok chegar, Hati irá finalmente apanhar Máni e tentar devorar a lua.
Menires — pedras eretas, megalitos.
Merwif— a mãe de Grendel; em Inglês Antigo, literalmente, «mulher das águas» ou «mulher da lagoa».
Midgard — na mitologia escandinava, o reino
que os AEsir destinaram aos homens, separado do resto do cosmos por uma
grande muralha construída a partir
das sobrancelhas do gigante Ymir. Midgard resulta duma transliteração do Escandinavo Antigo Midgardr
(«recinto do
meio»). O Inglês Medieval transforma Midgardr em
Middlelaerd (ou Middel-erde), ou seja, «meio da terra».
Midgard, serpente
do — (ver Jörmungand).
Montanhas
Tenebrosas — Nidafjöll, as montanhas
do inferno escandinavo, donde é oriundo o
grande dragão Nidhogg,
O Que Mordisca as Raízes.
Mörsugur — no antigo calendário escandinavo, o mês do solstício de Inverno, que se segue a Frermánudr.
Mundilfaeri — na mitologia escandinava, um gigante,
pai da deusa do sol Sól e do deus
da lua Máni, que teve da
gigante Glaur; também Mundulfäri.
Muspéll — um gigante associado a Ragnarok,
que habitava no reino primordial do fogo que fazia fronteira com o buraco
de Ginnunga. Os filhos de Múspell haverão de
destruir Bilröst, assinalando
a batalha final travada entre os AEsir e os gigantes.
Nerthus uma deusa
da fertilidade germânica
associada à água; também conhecida por Nerpuz, Hertha. Alguns
estudiosos do Beowulf estão convictos de que «Grendles modor» poderá ter sido
criada como uma encarnação desta
deusa.
Nidafjöll — (ver Montanhas Tenebrosas).
Nidhogg, Nidhogg,
0 Que Mordisca as Raízes — o grande dragão que habita sob Yggdrasil, o
«Freixo do Mundo», e que nunca se farta de mordiscar
as raízes da
enorme árvore. Também Nídhöggr («atacante da malícia»).
Niflheim — a «terra das brumas»
escandinava, situada a norte do buraco de Ginnunga, terra dos Gigantes
de Fogo e da filha de Loki, Hel.
Njörd, Njördr — na mitologia escandinava, um dos Vanir,
deus do vento e das costas marítimas, dos pescadores e da navegação. Njörd tem o
poder de acalmar tanto o mar como o fogo. Casado com Skadi, pai de Yngvi-Freyr
e Freyja.
Nornas — as mulher que fiam o destino do
cosmos sob os ramos de Yggdrasil. As mais importantes são Urdr («destino»), Verdandi («o que há de vir») e Skuld («possibilidade»), que não se limitam a decidir o destino,
mas também tratam
das raízes do
Freixo do Mundo para que estas não apodreçam. A
chegada destas três poderosas
gigantes a Jötunheimr, anunciou o
fim da época
dourada dos AEsir.
Odin, Odin Pai
de Todos, Odin Juiz de Hel e Odin Langbard — o deus axial do panteão escandinavo. Juntamente com os
seus irmãos, Vili
e Vé, Odin matou
o gigante primordial Ymir e utilizou o cadáver do gigante para ordenar o mundo. Depois de passar nove dias
pendurado no Freixo do Mundo, atravessado pela sua própria lança, Odin conquistou a sabedoria necessária para governar os nove mundos. A
troco da perda da vista esquerda, bebeu da Fonte do Conhecimento e obteve
acesso ao passado, ao presente e ao futuro. Odin haverá de perecer em Ragnarok, juntamente
com os outros
Ragnarok — em Escandinavo Antigo, «crepúsculo» ou «destino dos deuses». Ragnarok é a derradeira batalha entre os AEsir
e as forças do caos,
incluindo Loki e a respectiva prole monstruosa, bem como outros
gigantes. Ragnarok destruirá praticamente
todo o universo e anunciará o advento
duma nova era.
Rán — esposa de AEgir e mãe de nove filhas, Rán é a deusa do mar. Conta-se que Rán tinha uma rede com que por vezes apanhava pescadores incautos.
Aliás, Rán significa «roubo». Todos os homens que se afogam no mar são levados por Rán.
sahagin — «bruxa marinha», uma
expressão aplicada à mãe de Grendel.
Sigurd Matador de
Dragões — uma figura heróica da mitologia nórdica, que ocupa igualmente uma posição de destaque na saga islandesa Völsunga. Filho
adotivo do deus Regin, Sigurd mata Fafnir (filho do rei gnomo Hreidmar
e irmão de
Regin), que assumira a forma dum dragão. Em Escandinavo Antigo, Sigurd é conhecido por Sigurdr e, em Alemão Antigo, por Siegfried.
Skoll — o lobo que diariamente persegue a
biga da deusa Sól através do céu.
skorsten — em sueco, uma chaminé.
Skuld — (ver Nornas).
scylding — Inglês Antigo (plural, scyldingas), Escandinavo Antigo, skjöldung (plural, skjöldungar), traduz-se
por sbielding «proteção com escudo» e refere-se a um membro da família real dinamarquesa, bem com ao
seu povo. A etimologia da palavra pode remontar ao rei Scyld/Skjöld.
Sól — deusa do sol, filha de Mundilfaeri
e de Glaur, esposa de Glen; Sól transporta-se do sol através do céu durante o
dia numa biga dourada.
Svartálfheim — o reino subterrâneo dos gnomos.
Thor
Matador de Gigantes — o deus escandinavo da trovoada, filho de Odin e Jörd. Thor empunha o martelo Mjolnir
e irá perecer em
Ragnarok ao combater a Serpente do Mundo.
Urdarbrunn — a fonte onde as três Nornas vão buscar a água com que regam o Freixo do Mundo.
Urdinas — as nove filhas do deus marinho AEgir
e da deusa Rán; as ondas.
Valgrind — os portões de Valhalla.
Valhalla — em Escandinavo Antigo, Valhöll, «salão dos mortos na guerra». E o grande salão de Odin
em Ásgard, onde
aqueles que caíram em
combate celebram enquanto esperam por Ragnarok.
Valquírias — deusas ao serviço de Odin e que podem ser
usadas como sinônimos de Nornas.
As Valquírias dão as boas-vindas aos einherjar que
chegam a Valhalla, onde também servem como criadas. Odin envia as Valquírias para todas as batalhas, onde
lhes cabe decidir quem vence e quem é derrotado.
Vândalos — uma antiga tribo germânica. Compostos por dois grupos, os
Silingi e os Hasdingi, os Vândalos eram
poderosos guerreiros.
Vanir — um subgrupo dos AEsir, que
inclui os deuses Njörd, Heimdall,
Freyja e Frey. Durante algum tempo, os Vanir andaram em guerra com os
outros AEsir, até que uma
troca de reféns veio pôr fim ao conflito. Os Vanir habitam
em Vanaheimr.
Vé — irmão de Odin e Vili, filho
de Bestla e Bur, juntamente com os irmãos, criou o mundo a partir dos restos mortais do gigante Ymir.
Verdandi — a Norna Verdandi (ver Nornas).
Vidar — amiudadas vezes apresentado com o «deus silencioso», Vidar é filho de Odin e da
gigante Grid. Em Ragnarok, vingará a morte do pai, e será um dos poucos AEsir que sobreviverá à batalha final. Deus da vingança e aquele que define o espaço (tal como Heimdall define as fronteiras do tempo).
Vili — irmão de Odin. Juntamente com Odin e Vé, criou Midgard
e ordenou o mundo.
warg — Escandinavo Antigo, «lobo».
Weormgraef — «sepultura do verme», «sepultura do dragão».
Wergeld, wergild — pagamento, sob a forma de dinheiro
ou vidas humanas, a troco dum homicídio ou de crimes muito graves.
Serpente do
Mundo — (ver Jörmungand).
Wylfings (também Wulfings) — uma tribo importante, talvez o clã dominante dos Geatas do Leste.
Wealthow, esposa do rei dinamarquês Hrothgar, pertencia ao clã wylfing, tal como Heatholaf, assassinado pelo pai de
Beowulf, Ecgtheow.
Yggdrasil, Freixo do
Mundo — na
mitologia escandinava, a árvore que
se encontra no centro do cosmos e que une os nove mundos. Os únicos humanos destinados a
sobreviver a Ragnarok — Lif e Lifthrasir
— consegui-lo-ão escondendo-se debaixo dos ramos
de Yggdrasil e alimentando-se do orvalho das suas folhas.
Ymir — o primeiro gigante, que a primeira
vaca, Audhumla, criou lambendo um bloco de geada. Ymir foi morto e
desmembrado pelos AEsir, Odin, Vili e Vé (os filhos de Bur), que se
serviram dos seus restos mortais para formar o cosmos.
Yule, Yuletide — uma celebração pré-cristã do solstício de Inverno, que incluía um banquete e sacrifícios, presente em muitas culturas
do Norte da Europa.
Nota da
Autora: se algum
professor vos recomendou que lessem Beowulf, nem vos passe pela cabeça seguir esta versão romanceada. Aos leitores que
gostariam de aumentar os seus conhecimentos relativos à mitologia escandinava,
recomendo-lhes vivamente a leitura de Norse Mythology: A Guide to the Gods,
Heroes, Rituais and Beliefs (Oxford University Press, 2001), de John
Lindow.
AGRADECIMENTOS
Embora, na escrita deste livro, eu tenha seguido
essencialmente o curso que me foi apresentado pelo guião de Neil Gaiman e Roger Avary, há um número adicional de fontes a que gostaria de fazer referência. Norse Mythology: A Guide
to the Gods, Heroes, Rituais and Beliefs (Oxford University Press, 2001),
de John Lindow, é uma obra
que se revelou indispensável e que
recomendo a todos os que se interessem pelas crenças e costumes da época dos
viquingues. Não
posso ainda deixar de mencionar uma série
de ensaios acadêmicos que
me foram muito úteis e que
consultei com freqüência
durante a elaboração deste
livro: «Beowulf: The
Monsters and the Critics»
(1936), de J. R. R. Tolkien; «The
Interlace Structure of Beowulf» (1967), de
John Leyerle; «Royal Halls: The Sutton Hoo Ship Burial» (1967), de Ralph Arnold; «The Issue of Feminine Monstrosity: A Reevaluation of
Grendel’s Mother» (1992), de
Christine Alfano; «The Germanic
Earth Godess in Beowulf»
(1991), de Frank Battaglia; Beowulf & Grendel: The Truth Behind Englands
Oldest Legend (2005), de John Grigsby; «Grendel’s Heroic Mother» (1984), de Kevin S. Kiernan; «Did Beowulf Commit “Feaxfeng” against Grendel’s
Mother?» (1976), de E. G. Stanley; e «The Use of the Term “Aeglaeca” in Beowulf at Lines 893
and 2592» (1961), de Doreen M. Gilliam. Enquanto trabalhei
neste livro, também consultei
com regularidade duas traduções do poema
anônimo Beowulf
— a tradução clássica em prosa da autoria de E. Talbot Donaldson, datada de 1966,
e a tradução em verso
de Seamus Heaney, de 2000. Quando traduzi eu própria do original anglo-saxão, recorri à ajuda de A
Concise Anglo-Saxon Dictionary (University of Toronto Press, 1984), de
J. R. Clark-Hall e a Old English: A Historical Linguistic
Companion (Cambridge
University Press, 1994), de Roger Lass, entre outras obras.
Gostaria ainda de agradecer às seguintes pessoas e instituições: a Poppy Z. Brite, pela atenção que me deu; a Neil Gaiman, por
ter a audácia de
confiar em mim; à minha
agente literária,
Merrilee Heifetz; aos editores de texto deste livro, Will Hinton e Jennifer
Brehl, da HarperCollins; a Jennifer Lee e James Shimkus; Sonya Taaffe, pelo
latim e pela comiseração; a Byron
White; aos funcionários da
Robert Woodruff Library (Emory University); a Claire Reilly-Shapiro e a Albert
Araneo da Writer’s House (NYC); a David J. Schow, por ter encorajado a minha
investigação dos
paralelos surpreendentes entre Alien, de Ridley Scott, e Beowulf; e,
acima de tudo, a Kathryn A. Pollac. Este livro foi escrito num Macintosh
iBook e num iMac.
lindissimoooooooooooo
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